RUI CHAFES

PELE DE AREIA

Encolhido atrás do monte de pedras que restavam do muro que antigamente defendia o edifício militar, agora em ruínas. Sentado no chão, protegendo os olhos do violento turbilhão de areia e vento. O céu escureceu e apagou-se. Esperando que a tempestade termine, começa a recordar tudo o que deixou para trás, vertiginosa memória na penumbra vermelha das nuvens de poeira. O calor e a extrema secura tornam-se angustiantes, quanto tempo mais durará esta noite antecipada? Diz para si mesmo que, na verdade, a eternidade não é mais do que o momento presente, a duração de uma tempestade. Aguardando que tudo isto passe e que a lua apareça, silenciosa no luminoso azul do céu, pegou numa pequena pedra aguçada e começou a escrever na areia o livro que quereria voltar a ler, naquele momento. Foi com ele que aprendeu a importância de ter de fazer o caminho sozinho, através do frio e da chuva, por vezes debaixo do sol abrasador, por vezes em longas travessias nocturnas, guiado pela luz da lua. Frio e calor, cheiros e temperaturas. O constante rugido, esse “trovão que ribomba e que a projecta para a frente sobre o asfalto”. Lembra-se da luz vibrante entre as folhas das árvores que rodeiam a casa onde a viu pela primeira vez.

 

Na primeira vez que passou a mão pelo liso e generoso depósito, avistou as futuras viagens e os caminhos do vento que o esperavam. Experimentou o novo peso que o aguardava silencioso, prestes a acordar. O estrondo do motor fê-lo tremer de emoção e expectativa. “Sentiu a alegria impetuosa de ouvir o seu ruído surdo, a baixa rotação, enquanto o quadro do motor tremia com aquela impaciência de ser posto à prova que as máquinas potentes não denotam menos que os cavalos de raça”, tinha lido naquele livro que o acompanhou durante muitos anos. As palavras escritas nas páginas amarelecidas transformaram- se em realidade, na música e no cheiro acre a gasolina que nos promete a liberdade sem retorno. Tinha compreendido, com essas sucessivas leituras, que não havia maneira de fugir ao destino dos corpos que se fundem um no outro, lâmina de sangue e ferro atravessando a luz dos dias, faca precisa cortando o vento no limite do fim inesperado e sempre adiado. Vai escrevendo na areia as palavras desse livro sabendo que o vento as apagará para sempre.

 

Rui Chafes

Lisboa, Março 2024