PAULO MOURA

Ano Novo

Saio à rua nos primeiros dias do ano e parece-me que as pessoas falam, olham, andam como feras.

Trabalham, entram num autocarro, conduzem o automóvel, arrumam a casa, cozinham um jantar especial, ensinam aos filhos coisas úteis para o futuro, como feras.
Ao final de cada dia de um ano inteiro, não é possível passar em revista os acontecimentos, tomar nota das bombas, dos hospitais arrasados, das crianças mortas, e adormecer, sem que algo muito essencial tenhamos mudado em nós próprios.
Cada dia e cada noite que passam sobre Gaza ou a Ucrânia deixam-nos seres humanos piores. Mesmo que não tenhamos feito nada, nem pudéssemos ter feito nada. Mesmo que sejamos inocentes, ou que tenhamos sofrido um pouco, ou muito, em cada telejornal.
A pessoa que adormece depois de um massacre não acorda a mesma. 

É uma pessoa que nalgum micro-segundo do limbo da semi-vigília, sentiu: eu posso viver com isto. E na manhã seguinte é outra pessoa.

É fácil dizer: somos todos a criança de Gaza, quando o que temos de dizer é: somos todos o assassino da criança de Gaza.
Saio à rua nos primeiros dias do ano e já me parece que as pessoas falam, olham, andam como assassinos.
Na cidade, os edifícios são espectros de abandono e ruína, arautos insolentes de um mundo inanimado, hostil, superior.
O horizonte visível tem uma face na escuridão, onde as figuras humanas se escondem envergonhadas, diminuídas, em fuga.
Hordas obedientes deixam-se engolir pelos túneis e pelos comboios, cujo coração de máquina lhes pulsasse amorosamente nas próprias veias.
E até na praia a beleza é longínqua, reflectida no fino tapete de água que agarra os pés, como um pântano, e não nos deixa caminhar.

Paulo Moura